per•for•man•ce, sf.
ambivalência. logos e pathos, formas e matérias. goffman e a interação social: encarnação. design, ativismo e o sonho de autonomia. capital simbólico e portfólio. identificação imaginária e letargia.
só tem uma coisa com que fico mais fascinado do que com a ambiguidade das palavras: a sua ambivalência. parece que quando elas assumem esse status contraditório é como a implosão de uma estrela e o nascimento de um buraco negro semântico, exercendo força de gravitação tamanha que engole tudo ao redor.
performance é uma dessas palavras. no seu uso mais corriqueiro, ela expressa um maior ou menor desdém com relação a um determinado modo de agir que seria falso, ilusório. por outro lado, essa ilusão subentende um corpo – aliás, mais que isso, subentende uma imagem – que é indispensável para constituirmos sentido sobre o mundo.
1. encenação ou apresentação realizada por um artista em um espetáculo
não sei de vocês, mas performance me remete diretamente ao teatro, em que há pouca preocupação com a Verdade, mas muito compromisso com os afetos. nos termos em que aristóteles coloca, a arte dramática se dirige mais ao pathos do que ao logos. ou, como diria fernando pessoa nessa já desgastada menção ao autopsicografia:
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
isso dá a ver o primeiro sentido que mencionei, de desdém, com relação à performance. como não poderia deixar de ser, há aí um fundo racionalista: a Verdade é aquilo que se prova por meio do logos, desenvolvido plenamente na lógica proposicional e, também, na matemática. se toda pessoa é mortal e eu sou uma pessoa, logo, eu sou mortal; esse tipo de coisa.
essencialmente, há aí um sentido do pathos como a distorção física que precisa ser superada pelo emprego da lógica formal – portanto, metafísica. isso, claro, está intimamente vinculado ao idealismo platônico, em que a Verdade está nas formas (ideias) e não na matéria, que é uma mera degeneração delas.
2. evento improvisado em que os artistas se apresentam por conta própria
o papel de um bom ator – ou poeta, diria pessoa – é ser um bom fingidor. claro que não se finge algo que é verdade, que é factual. finge-se apenas o que é falso. mas seria inescapável à atividade poética esta contradição: fingir que é dor a dor que de fato sente. portanto, uma boa performance, em uma narrativa dramática, ao encarnar um personagem – poderíamos dizer, à la platão, ao dar matéria a uma forma –, precisa fingir uma verdade.
em outro lugar1, falei sobre a teoria da interação social de erving goffman. em “a representação do eu na vida cotidiana”2, de 1959, o sociólogo analisa as dinâmicas das interações sociais usando metáforas do teatro. a ideia central é que toda interação entre pessoas pressupõe a encarnação de um personagem – um “papel”, no sentido dramatúrgico – socialmente construído.
a consequência lógica disso é que não há um Eu “puro”, essencial. tudo aquilo que unificamos sob a ideia do self é uma metaficção, por assim dizer: uma ficção que unifica uma série de personagens ficcionais que se forjam nas cenas sociais. de novo, retomando os termos de platão, o Eu não existe enquanto ideia, enquanto forma; apenas enquanto matéria, nas situações sociais em que aquele corpo está posto.
nesse sentido, para além de uma sentença poética, a autopsicografia de pessoa se torna uma verdade sociológica. no nosso cotidiano, nós apenas fingimos o que deveras sentimos. performance aqui, deixa de ser uma distorção para ser a única verdade possível em uma interação social, por estar imbricada em uma situação material.
3. execução de uma atividade ou trabalho
até aí, tudo bem. a coisa começa a se complexificar quando nos encontramos na situação do capitalismo tardio, em que qualquer tentativa de distinguir o polo lógico (logos) da verdade do polo patético (pathos) da performance é, na melhor das hipóteses, turva.
via de regra, byung-chul han é quem mais vem à mente quando a ideia é sintetizar o espírito do nosso tempo. em um dos duzentos livrinhos dele3, ele aponta a crise da narração como um dos aspectos da vida contemporânea. segundo ele, inclusive, a hiperinflação do conceito de “narrativa” – e suas variantes, como “pós-verdade”, “fake news” e etc. – que invadiu o debate público é um sintoma dessa crise. é aquela coisa: quando tudo é narrativa, nada é narrativa.
um dia, já me interessou a dimensão subjetiva desse fato, mas acho que goffman já responde às minhas principais inquietações. hoje, me interessa a dimensão política disso. agora, diria até que já é uma discussão velha, mas lá por 2016, na primeira eleição de trump, a ideia da política como a construção de narrativas era algo onipresente.
por alguma razão, entretanto, no design isso ainda é muito recorrente. basta mencionar a ideia do storytelling como um aspecto recorrente nas discussões sobre branding, mídias sociais, design de produto, design gráfico, etc. ou então, bastaria abrir qualquer defesa de projeto no linkedin ou em um catálogo de projetos premiados. essa qualidade é frequentemente apresentada como o principal modo de agregar valor a um trabalho qualquer de design: com isso, uma marca qualquer pode virar uma verdadeira brand – que, como sabemos, é muito mais caro.
4. gesto teatral e exagerado; encenação para fazer crer em falsidade
eu precisaria de uma pesquisa mais aprofundada para delinear isso, mas acho que é fácil afirmar que a “elite cultural” é tradicionalmente mais progressista no brasil4. por consequência, isso é verdade também no design. para além dos contornos nacionais, isso parece ser algo recorrente do campo também a nível internacional, como é muito bem descrito por j. dakota brown, no ensaio “o poder do design enquanto sonho de autonomia”5.
digo tudo isso porque a ideia de “ativismo” ou de um engajamento político progressista tende a ser reconhecido pelos pares como uma virtude, como um símbolo de status. se você está me lendo, é possível que já saiba como eu me posiciono com relação a isso – e eu, honestamente, não sei como ser mais claro do que eu já fui no texto que citei na nota 1:
Quando o vínculo entre comunicação e experiência se esgarça – e até rompe –, o próprio ato de comunicar torna-se aquilo que Tolentino chama de sinalização de virtude. O termo designa uma performance que não ultrapassa a superfície do feed, com o objetivo exclusivo de ganhar pontos com o público da sua performance existencial. O sociólogo Pierre Bourdieu deu termos econômicos para essa circulação de prestígio social; para ele, isso significa ganhar capital simbólico. Para nós, é o biscoito; talvez uma categoria especial: o biscoito político.
De uma perspectiva analítica, o que a sinalização de virtude faz é deslocar uma discussão política para o âmbito individual e moral. (…) Isso contribui para nos precarizar ainda mais – e, quando não conseguimos fazer trabalhos “sociais”, nos sentimos ainda mais culpados. O resultado é um círculo vicioso de culpa e precarização que todos assumimos individualmente.
mas vou tentar elaborar mais um pouco. fica claro aí como usei performance naquele primeiro sentido acusatório, como uma falsidade, um gesto vazio. isso porque, via de regra, a encenação que se faz de “ativismo” na interação social – sobretudo aquela mediada por plataformas – não corresponde a um engajamento político efetivo, para além do exercício da própria profissão.
esse tipo de performance é vantajoso para quem a realiza porque nossa profissão está inserida em um sistema de circulação de economia simbólica, em que o prestígio social se transmuta em capital financeiro. ou seja, no pior dos casos, essa performance se torna um truque de prestidigitação obsceno para agregar valor – nesse caso, dinheiro mesmo – ao trabalho de um profissional.
algo que talvez não tenha elaborado suficientemente bem na ocasião anterior é o papel que o portfólio desempenha no acúmulo desse capital simbólico. vamos pensar qual é a função do portfólio na nossa profissão. é por meio dele que um designer vai tanto convencer um cliente de que é capaz de realizar aquele trabalho, delineando, mais ou menos, qual vai ser o resultado do trabalho por meio dos trabalhos anteriores. mas, mais do que isso, vai demonstrar sua “visão”, seu modo de “solucionar problemas”. ou seja, estabelecer a imagem e o valor da sua brand.
esse segundo aspecto é particularmente eficiente no efeito que o portfólio causa internamente ao campo do design; mais nos pares do que nos clientes. grosso modo, essa basicamente é a função dos prêmios que o campo dá aos profissionais do próprio campo. mas não temos condições de explorar mais dos desdobramentos sociológicos disso aqui.
5. apreensão de uma imagem a partir do desempenho de um papel
como disse quando mencionei byung-chul han, esse é um fenômeno muito amplo do capitalismo tardio e, claro que não ocorre apenas no design – mas vamos pensar como isso ocorre no microcosmo do design. para finalizar, quero mudar a perspectiva de análise e pensar na recepção desse tipo de mensagem e como isso se relaciona com ideologia e, portanto6, com o imaginário, no sentido da psicanálise lacaniana.
uma das hipóteses que apontaria é que ninguém realmente acredita que fazer trabalhos “engajados” ou cards de “design ativista” vai alterar a realidade. creio que se cria aí um ciclo de autoengano a partir de uma relação de identificação imaginária. deixa eu tentar desempacotar isso.
a dimensão imaginária7 consiste, entre outras coisas, da ilusão de consistência e completude. quando se cria uma relação de identificação imaginária, projetamos naquele outro aquilo que gostaríamos de ver em nós mesmos. esse tipo de relação é frequentemente um bom escape para certos desejos que não conseguimos realizar propriamente na realidade.
no contexto específico do design, diante de todas as condições de precarização em que vivemos, há muito poucas condições materiais de realizarmos nossos desejos de ação política e coletiva. diante da impossibilidade de uma ação efetiva, nós depuramos esse desejo vendo e apoiando outros designers que conseguem, no contexto da profissão, performar – no sentido de goffman, socialmente – atuação política.
o triste disso é que, ainda que haja a catarse momentânea, não há mudança efetiva do mundo. para isso, a única solução é realizar a motivação inicial: o trabalho coletivo. ou seja, engajamento político material.
no texto “ainda há design(er) ativista?” na revista recorte. a bem da verdade, relendo agora, me parece uma menção bem apressada. mas tamo aqui pra sanar isso.
todos os que li são bem bons, não é uma ironia. é que os livros são pequenininhos mesmo.
precisaria de mais pesquisa porque talvez isso não seja verdade no contexto do integralismo no brasil, que tinha uma expressão forte no movimento moderno. por outro lado, isso pode estar deixando de ser verdade de novo. uma das grandes previsões de catástrofe é que expressões reacionárias de cultura estão assumindo a hegemonia cultural também. é a indústria cultural do agronejo. ver mais aqui.
o ensaio foi publicado aqui pela editora clube do livro do design, no volume automação e autonomia: dois ensaios sobre design. acho que cabe também dizer que eu fui um dos tradutores da edição.
falei um pouco mais disso neste texto e nesse verbete.







Não consegui deixar de pensar no imortal meme "GEnte, issso eh palhaço de vdd ou gente vestida de palhaço?"
Muito boa análise. Me indicaram seu texto porque semana passada eu também usei da descrição da palavra performance para balizar outro contexto (sobre erotismo e a otimização do corpo na sociedade atual).
Foi muito interessante ler sobre o desdobramento relacionado a design-ativismo. Importante, obrigada!