
1. fazer desenhos ou figuras em texto ou livro
comecei a pesquisar sobre livros ilustrados em 2014, na pós-graduação em design na UFPE. algum tempo antes, gabi tinha me dado de presente contos de lugares distantes, um livro de literatura ilustrada de shaun tan, um autor-ilustrador australiano de quem me tornei fã quase que instantaneamente.
depois de alguma dificuldade, consegui formular um pré-projeto de pesquisa para a seleção do mestrado, intitulado o estranhamento nos livros ilustrados de shaun tan1. nos dois anos seguintes, me dediquei a estudar essa linguagem, esse artista e esse conceito – e um monte de outras coisas que os rodeavam. depois devo falar mais sobre isso. de maneira geral, devemos só tratar a literatura ilustrada exatamente pelo que ela é: literatura.
ano que vem vai fazer dez anos que defendi a dissertação e, nesse meio tempo, tenho mantido essa pesquisa escrevendo uma coisa ou outra aqui e ali2 e, principalmente, com as iniciações científicas que tenho orientado no IFPE3. fora isso, tenho feito alguns livros ilustrados com a editora pó de estrelas4 e tido algum diálogo com outros autores e ilustradores5. ainda assim, menos do que eu gostaria de me dedicar ao tema e ao ofício.
2. instruir(-se)
de uns tempos pra cá, eu tenho me interessado e estudado uma coisa ou outra de psicanálise, em especial, lacaniana. isso tem me dado uns insights muito significativos sobre os livros ilustrados. isso deve render muitos outros verbetes no futuro, mas um dos pontos que quero articular aqui é sobre infância.
durante a pesquisa do mestrado, minha birra com a (con)fusão entre literatura ilustrada e literatura infantil era uma coisa – ironicamente – infantil. acho que queria provar que era uma Forma de Arte™️, meio inspirado no que aconteceu com as graphic novels, que são tidas como quadrinhos ~para gente grande~6.
no entanto, uma das coisas que entendi com a psicanálise foi que a maioria de nós, adultos, somos infantis mesmo. somos infantis porque automatizamos as respostas precárias que demos ao mundo justamente quando só podíamos responder precariamente a ele. com o passar dos anos, nós só reproduzimos essas respostas – e dificilmente as revisamos numa nova condição, em que talvez possamos dar respostas diferentes, menos precárias.
nesse sentido, o controle que se expressa na literatura infantil não é mero didatismo, mas uma forma de opressão a um grupo – literalmente – minorizado. muito mais importante que tentar mostrar que livros ilustrados podem ser ~para gente grande~, hoje me parece mais promissor proporcionar emancipação e autonomia por meio dessa linguagem. e, talvez, quem sabe, fazer alguns adultos revisarem suas respostas para o mundo.
3. exemplificar
o livro ilustrado é uma linguagem privilegiada para isso porque articula diferentes modalidades para constituir o ato de leitura. posso mostrar isso falando de touro vermelho, de dipacho.
o título é muito indicativo, mas já na capa7 identificamos uma relação contraditória entre texto e imagem; entre o que é “dito” e o que é mostrado. o touro é preto. isso é reiterado no início da narrativa: os pássaros, o «céu azul»8, , o «pasto verde», o «sol amarelo». desses, só o céu não aparece vermelho na ilustração. até a metade do livro, tudo é vermelho ou preto.
à medida que o touro vai percorrendo algum trajeto, somos informados de que ele não gosta de nada. aí chegamos na cena psicanalítica.
o touro vermelho – que é preto – se olha em um espelho d’água. seu reflexo é vermelho. aqui, descrever vai ser bem pobre comparada à experiência do ritmo fascinante criado pela passagem das páginas, mas vamos lá.
na página-dupla seguinte, ele mergulha na água, com respingos muito vermelhos, que vão se azulando à direita, rumo à próxima página.
nova virada.
vemos apenas algumas linhas azuis.
nova virada.
o touro vermelho emerge, vermelho.
nova virada.
agora, toda paisagem está da cor “certa”: a grama verde, o céu azul, o sol amarelo, o touro… vermelho. não temos mais nenhuma palavra nas próximas páginas-duplas, mas há de se intuir que o touro está mais feliz pelo modo em que ele aparece saltitando antes da folha de guarda – que no início do livro era vermelha e agora está azul.
na narrativa visual de dipacho, há uma menção direta ao narcisismo: quando o touro olha para o espelho d’água, é a cena crucial em que narciso se apaixona por seu reflexo. ele mergulha e, depois, silêncio. mas o touro não morre – pelo menos, não literalmente. mas morre simbolicamente, porque sai outro, transformado. ou seja, o arco do livro é o processo do luto narcísico.
ver o fora como somos dentro e não gostar de nada. em termos psicanalíticos, esse é um dos mecanismos de defesa mais primitivamente narcísicos: a projeção. incapaz de lidar, em sua psique, com aquilo que recalcamos, projetamos para a realidade. a lógica é: “o que é ruim está fora”9. mas, ao nos afogar no lago – vale dizer que a água é uma imagem costumeira do inconsciente – e superar o luto narcísico, passamos a lidar com a realidade de maneira mais justa.
creio que lidar com a realidade de maneira mais justa seria um desenlace razoável para o leitor. se as crianças conseguirem elaborar isso com um livro ilustrado, é um ótimo sinal. mas talvez quem mais precise disso sejam os ~adultos~.
a dissertação está disponível aqui. até hoje, considero um trabalho muito robusto e ainda gostaria de desenvolver e atualizar muita coisa que iniciei ali. a boa notícia é que tem projetos para isso!
entre os artigos que publiquei decorrentes da dissertação, acho que esse é significativo, porque discuto a linguagem. esse outro, publicado com gabi, já avança a proposta da dissertação, acrescentando um novo parâmetro. tentei ter produções não-acadêmicas também: publiquei um artigo na revista emília – especializada em livros ilustrados.
o mais simbólico foi o mala quadrada, cabeça quadrada, de 2018. na ocasião do lançamento do livro, elaboramos um booktrailer que, na real, é uma declaração prático-teórica de como concebemos livros. o motion design feito por andré menezes é surreal, recomendo muito assistir!
conheci odilon moraes, um dos grandes autores-ilustradores e teóricos do livro ilustrado no brasil e fui estudante de annabela lópez e rosinha na usina de imagens, talvez a primeira escola de ilustração para livros ilustrados no brasil.
til é aspa irônica!
uma das propriedades do livro que é exagerada no livro ilustrado é o fato de que, de fato, começamos a ler o livro pela capa. o nome técnico desses elementos “extras” para além do “conteúdo” que lemos em um volume é paratexto. eu discordo dessa categoria, mas isso é outra discussão.
o que estiver entre aspas francesas (essa de ladinho «) é citação direta do livro.
fiz uma série de posts no instagram partindo dessa estrutura do narcisismo primário: bom dentro, ruim fora. o primeiro deles é esse aqui; mas em algum momento, vou retrabalhar esses textos e publicar por aqui. por ora, recomendo esse texto que laura escreveu dialogando com essa série de posts!
esse livro e essa análise <3
esse teu texto me lembrou um livro chamado “história social da criança e da família” no qual o autor discute, dentre outras coisas, a criação do conceito de infância (já tinha comentado contigo? hahahahaha)
mais uma vez arrebatada para estudar eduardo e o que eduardo indica! você é precioso, querido!