i•ro•nia, sf.
abismos geracionais. rancière, partilha do sensível: política e comunidade. jameson, fisher e capitalismo tardio. lorusso, barthes e a implosão da ironia. a ironia como ensimesmamento. fleabag.
1. Ling. figura de linguagem, geralmente usada para fazer graça ou mostrar irritação, em que se declara o contrário do que se pensa.
como vocês sabem, sou professor e, freireano, tento compreender o ambiente dos estudantes com quem convivo e como eles o lêem. por isso, acontece muito de me sentir velho. e olhe que nem tenho tanta diferença de idade em relação a eles, mas uma das consequências da aceleração do capitalismo tardio é acelerar também os abismos geracionais.
esses abismos implicam distintos regimes de sensibilidade. talvez esse sentir-se velho não seja nem propriamente algo relacionado à idade, mas de não me sentir pertencente nessa comunidade sensível, nesse lebenswelt. sempre sinto um chacoalhão quando ouço “quero me m*”, piadas com depressão ou ansiedade ou mesmo considerações sobre “baixar as expectativas”.
essas expressões são sempre empacotadas com muita ironia o que, claro, me deixa numa sinuca de bico. se interpreto isso a sério, eu não entendi a piada; se leio a ironia, posso até compartilhar da sensibilidade deles, mas isso cria um efeito colateral muito perigoso: a normalização desses discursos.
2. Fig. acontecimento ou desfecho contrário ao que se esperaria das circunstâncias.
em um de seus vídeo-ensaios, olisunvia fala do potencial político da ironia1. é o “político” no sentido mais primordial, de que rancière também fala: a criação de uma comunidade. a comunidade se define pela delimitação de um dentro e um fora – nesse caso, quem “pega” a piada e quem não. a ironia é muito eficaz porque a sua indeterminação semântica – como devemos interpretar a mensagem irônica – funciona muito bem para distinguir pessoas em suas respectivas comunidades.
no entanto, algo muito curioso acontece quando a ironia se torna o modo de expressão hegemônico. seguindo fredric jameson, mark fisher já apontou como a generalização da ironia se tornou um sintoma cultural do capitalismo tardio para a resignação e imobilidade: “a atitude de ironia distante, própria do capitalismo pós-moderno, supostamente nos imuniza contra as seduções do fanatismo”.
a solução: baixar as expectativas. não acreditar em nada nos protegeria de nos frustrar. vê como o realismo capitalista realmente se expressa no cotidiano da educação?
é curioso como isso já soa como uma novidade velha. talvez provando como fisher estava certo, hoje a ironia é o modo ~natural~ de existência. qualquer rolagem no seu feed deve dar a ver vários espécimes de artefatos culturais recheados de ironia – em diversos níveis. seja a galinha se olhando no espelho ou a moça dançando lado a lado de seus diagnósticos de saúde mental.
a aceleração irônica faz com que tudo mude para permanecer exatamente igual. o efeito colateral disso é uma anestesia que leva ao cinismo.
3. situação ou acontecimento que parece ridicularizar as expectativas.
silvio lorusso é um designer ensaísta que tem takes críticos muito bons sobre a condição do campo hoje. já há algum tempo, ele trabalha com a ironia como um conceito importante e, recentemente, em resposta à coluna de elizabeth goodspeed sobre a desilusão profissional dos designers frente à precarização2, lorusso apontou que ironia e sinceridade são, ambas, performances equivalentes3.
no entanto, não sei se eu oporia a ironia à sinceridade porque a ironia é uma expressão sincera. a distância que a ironia cria não é uma distância emocional, porque ainda sentimos e reconhecemos em nós mesmos que sentimos o que a ironia “denuncia”.
em outras ocasiões4, lorusso já sugeriu pensarmos algum tipo de meta-ironia que pudesse agir num movimento contrário à desmobilização e à paralisação. também não creio que haja algo como uma meta-ironia. aqui, penso em barthes, e seu esquema dos mitos5. o mito seria um tipo de “meta-signo”, porque se comporia numa estrutura de “dois andares” a partir de um signo comunicado no cotidiano.
não creio que a ironia seja capaz de construir tal estrutura, porque uma ironia-de-uma-ironia não eleva a abstração, não cria outra modalidade de interpretação, não mobiliza de maneira distinta. na verdade, a meta-ironia implode. vira só mais uma ironia a circular dentre tantas outras.
4. contraste entre o esperado e o que realmente ocorre.
isso me leva a pensar como as plataformas parecem mesmo ser o habitat da ironia. como walter lippold diz, o “forma” das plataformas não é por acaso: o conteúdo não importa mesmo, desde que esteja in-formado pela própria circulação. na medida em que tudo circula na superfície das mídias das redes proprietárias, lorusso está certo: ironia e sinceridade equivalem.
ironicamente, tudo se equivale. a ironia tornou-se um modo de aplainar tudo, raspar a textura da vida e fazer com que os dedos deslizem pelas telas6. em certo sentido, retomando jameson e fisher, é como se a ironia fosse para a cultura o que o dinheiro é para as finanças no capitalismo tardio.
já se foi o tempo em que a ironia tinha um potencial de subversão. isso porque a enxurrada de ironia com que convivemos, mais do que uma distância emocional imobilizante, cria uma distância do outro. ela cria é um circuito fechado de extrema autoconsciência, um ensimesmamento que permeia uma subjetividade neoliberal de “protagonismo” frente a um público eternamente senciente.
a ironia sempre é instrumentalizada como uma rota de fuga, um escudo defletor que protege qualquer engajamento com o real. por isso, na verdade, eu oporia a ironia ao encontro, à experiência. pelo tamanho dessa news, vai ter que ficar para uma próxima, mas um bom exemplo disso é a série fleabag.
para mim, a parte mais interessante deste vídeo é a terceira.
este texto fez bastante frisson nas redes sociais. embora algumas pessoas tenham me mandado, confesso que no momento de escrita deste texto, ainda não li. por isso, nem comento o conteúdo; me interessa mais aqui a resposta de lorusso.
lorusso não chegou a escrever um texto sobre isso, até onde sei. essa resposta foi dada num post do instagram em que ele comentou o texto.
em “The Designer Without Qualities – Notes On Ornamental Politics, Ironic Attachment, Bureaucreativity and Emotional Counterculture”, lorusso apresenta um cenário desolador dos engajamentos críticos dos designers que, infelizmente, permanece atual.
um brilhante teórico e semiólogo, roland barthes é um desses intelectuais cruciais que foram burramente desprezados. em mitologias, barthes reúne colunas que escreveu para um jornal francês comentando os signos midiáticos que, até hoje, me parecem exemplares de uma boa literacia de mídia.
aqui, penso muito nas considerações de byung-chul han sobre a tecnologia atual, principalmente aquilo que ele discute em não-coisas.
Chego um tanto atrasado por aqui, mas o tema me importa muito. Tu sabe que venho de um modo de pensar pós-moderno. Pos-estruturalista seria mais preciso e talvez menos jocoso, mas já me acostumei com a pilhéria, recordo quando foi do D.A. de história e meus amigos marxistas diziam " Sai do fantástico mundo de Foucault". Isso só pra dizer que a posição irônica é algo que só tardiamente comecei a problematizar e pensar no cinismo como afastamento do objeto e da própria linguagem. Não estou de todo convencido com a crítica da ironia, mas um pouco, sim. Por isso, dei uma travada no quadro barthesiano sobre a mitologia pra pensar que de alguma forma a ironia talvez não alcance de fato o meta-nível que se propõe, no entanto, me parece que ela tem a mesma estrutura do mito, que toma um signo como significante para efetuar seu jogo. A ironia parece depender (assim como o mito) de uma construção simbólica anterior para exercer seu poder denagativo. A ironia então teria uma equivalência ao mito, se para o mito precisaríamos de uma espécia de ingenuidade, para a ironia, teríamos o ceticismo. Isso explicaria também a postura de tantos detratores de mitos que não conseguiram sair do próprio circuito que criticavam. Seriam preciso muitas voltas ainda, mas esse teu texto só me instiga a pensar mais na própria crítica mitoogica como uma chave para entender coisas como a ascenção da direita e do fascismo. Porque, isso fica cada vez mais claro, a crítica desmitologizante dos mitos da direita não produzem nada, nada além de uma ironia circular entre os próprios críticos.
MUITO BOM.