1. emprego da força física ou intelectual para realizar alguma coisa.
“Deixei de conseguir caminhar devagar. Mal conseguia encarar a cidade nos trajetos de autocarro que terminavam a desabar na cama. Seguia viagem com o olhar deitado sobre as mãos, pousadas nos joelhos, tentando conceber que estes mesmos dedos, estes mesmos pulsos, tinham passado horas a desmanchar e esquartejar seres recentemente vivos. Toda a alegria descoberta na minha nova vida se apagou em poucas semanas de Matadouro. Nunca mais consegui voltar à Biblioteca, não voltei a falar com o Bibliotecário. Nem a ler. De noite, até os sonhos me abandonaram. Estava gasta e vazia. Por muito que me lavasse e esfregasse, não conseguia arrancar de mim o cheiro fétido.”
natureza urbana, de joana bértholo1
a percepção social do trabalho não tem sido nada boa. sejam os memes autoirônicos ou os cards conscienciosos, a viralização dos conteúdos relacionados a isso apontam para um mal-estar irreprimível. o caso é ainda mais grave se fizermos um recorte geracional: os Jovens™ têm relações, no mínimo, conflituosas com trabalho, a ponto de xingarem pessoas por serem CLT2.
longe de mim acusar os gen z de ser uma geração de mary faty3. pior que isso, esses fatos são os sintomas mórbidos da época em que vivemos. uma época em que simplesmente perdemos toda uma dimensão das atividades humanas: nos subjetivar naquilo que produzimos. o resultado vemos a olhos nus: o trabalho e vida passam a ser opostos, antinômicos.
2. aplicação dessas forças como ocupação profissional.
nossa sociedade parte do princípio de que alguém detém os meios para produzir coisas para vender e que as coisas produzidas são também desse alguém. logo, quem não tem os meios, não tem nada a vender, senão seu tempo de vida – que podemos chamar também de força de trabalho. assim, a atividade humana passa a ser empregada nesses meios, em troca de uma remuneração4.
a questão é que, para que este sistema se mantenha, você não pode ser remunerado por aquilo que seu tempo de vida realmente vale. você precisa receber um tanto menos, porque esse tanto vai ser apropriado por outro – o outro que detém os meios em que você é obrigado a empregar seu tempo. e é exatamente essa condição de lucro que caracteriza a exploração do trabalho.
é por isso que os primeiros socialistas utilizavam metáforas barrocas para caracterizar o capitalismo. a imagem do vampiro5, por exemplo, é precisa porque o sistema está calcado em uma relação parasitária, em que o lucro depende da rapinagem da energia vital do trabalhador. sem o roubo do seu tempo de vida, não poderia haver lucro. a formulação mais corretamente marxista diria que todo valor precisa do trabalho vivo para se valorizar.

3. econ. conjunto das atividades humanas empregado na produção de bens.
marx via o trabalho como uma categoria muito fundamental para sua compreensão de mundo. “trabalho”, dirá ele, “é um processo entre humanidade e natureza, processo este em que o ser humano por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza”6. tudo o que fazemos é um modo de, num processo contínuo e dialético, fazer dessa realidade uma outra realidade7.
entretanto, algo muito estranho acontece com o surgimento do capitalismo como modo de produção. richard sennett, sociólogo e historiador, tem toda uma obra discutindo como esse sistema degenerou as atividades humanas. ele denominou a trilogia em que trata disso de projeto homo faber, resgatando uma certa definição do ser humano como a espécie capaz de modificar sua realidade por meio do fazer, do elaborar.
o primeiro desses livros, o artífice, trata longamente da ética do ofício que estava imbricado nesse modo de vida. não é pra glamurizar; a vida não era exatamente idílica: implicava renúncias – como celibato –, submissão às hierarquias, condições laborais extremamente precárias, baixa expectativa de vida, etc. a questão é que a pessoa levava a vida para ir de aprendiz a mestre artífice e isso criava um tipo de relação subjetiva com a atividade. para alguém nascido neste século, parece que isso é inimaginável.
4. obra realizada.
resumindo: fazer coisas é o que define o ser humano. o trabalho assalariado é uma expressão muito específica – e, inclusive, bem recente – da atividade humana no capitalismo. um dos sintomas mórbidos dos dias atuais é que o trabalho se opõe à vida. mas não precisa ser assim. nem sempre foi assim.
há várias maneiras de transformar a relação entre trabalho e vida. a que considero mais importante e promissora agora é a luta pelo fim da escala 6x1. essa é uma medida tangível, imediata e com amplo apoio popular: uma pesquisa8 aponta 63% da população defendem a redução para a escala 4x3. com isso, centenas de milhares de pessoas vão poder viver mais do que trabalhar; e isso vai criar uma sociedade muito melhor para todos – quem trabalha 6x1 ou não.
no dia 1º, haverá mobilizações de rua pelo brasil inteiro para reivindicar o avanço da pauta no congresso. o movimento vat9 é um dos principais aglutinadores, mas outras organizações como o pcbr10 e a up11 têm mobilizado há tempo. se informe, chegue junto e demonstre apoio – agora, sim, coordenado ao movimento de rua, a mobilização digital pode ajudar em algo.
daí, poderemos viabilizar outras relações entre trabalho e vida, para que essas coisas não sejam mais opostas entre si.
não li esse livro; gabi que me leu isso quando eu escrevia uma primeira versão deste texto. achei que se encaixaria perfeitamente bem.
essa tendência tem se demonstrado em várias frentes. uma síntese de qualidade foi feita pela brilhante jornalista fabiana moraes nesta coluna para a gama revista.
é como temos chamado maria de fátima, da novela vale tudo, no círculo de amigos. a personagem se caracteriza por querer ficar rica de maneira inescrupulosa, desprezando todo tipo de trabalho e pessoas trabalhadoras.
estudando para cá, entrei em contato com uma discussão muito intrigante que me fez reescrever este texto algumas vezes. em the critique of work in modern french thought, alastair hemmens faz uma revisão da produção do wertkritik, uma escola marxiana contemporânea. de maneira quase chula, marx – e quase todos os marxistas – defendia que o trabalho é bom e o capitalismo o corrompe (era exatamente o que eu defendia). esse grupo têm produzido uma crítica à própria categoria de trabalho como inerentemente capitalista. ainda preciso elaborar sobre isso, mas acabei aderindo a essa leitura neste texto.
utilizei a ilustração de walter crane logo abaixo em um outra ocasião. recomendo ver a explicação mais detalhada lá no texto da revista recorte.
alterei a citação para desgenerificar a humanidade.
estudando (ainda mais) para esse texto, descobri que alguns ecossocialistas têm revisitado a obra marxiana para depreender de lá um teoria do metabolismo, que ajude a vislumbrar a superação do capitalismo levando em conta a catástrofe climática. uma referência bem interessante é o ecossocialismo de karl marx: capitalismo, natureza e crítica inacabada à economia política, de kohei saito, publicado pela boitempo em 2021. essa visão é contraditória com a ideia da wertkritik, que mencionei na nota 4.
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Não ao trabalho alienante! Mas ouvi recente de que quando o trabalho era só apertar parafusos, a mente não ficava tão sobrecarregada como agora, principalmente no trabalho onde emprestamos algo da nossa bagagem cultural na sua realização. Acho que estamos numa curva de quebra, justamente porque nunca fomos tão cobrados com metas e prazos absurdos. A velocidade das redes, e das respostas a ela, tensiona muito a nossa própria capacidade de assimilar esses processos esmagadores, burnouts e adoecimentos psíquicos como consequência dessas pressões.