po•si•ção, sf.
a geografia como metáfora para a existência. os afetos que se montam em nós. uma paisagem. posicionamento político. economia libidinal.
1. postura de pessoa, sentada ou de pé.
por vezes, me defronto com perguntas que não sei responder – ou cuja melhor resposta é mesmo o silêncio. quando releio essa primeira frase, não me escapa o fato de que o próprio verbo já metaforiza uma certa posicionalidade: defrontar. tem que ser assim mesmo para navegarmos num real sem orientação.
o sentido da nossa existência é articulado por meio de todo um léxico geográfico que foi sendo abstraído até a anestesia. (acho importante ressaltar que sentido é uma propriedade dos vetores na física mecânica.) de qualquer modo, tenho me interessado pelo aspecto material que está desgastado por debaixo do verniz das metáforas de posicionalidade em nossa linguagem.
neste terceiro parágrafo, é domingo à noite. qual não foi a minha surpresa quando, depois de escrever toda a news, dei de cara com uma entrevista no radiolab exatamente sobre isso?1 essa antropóloga viveu com uma tribo australiana cuja linguagem para indicar posicionalidade não é relativa (direita, esquerda, etc.), mas absoluta, como em uma bússola ou mapa. você sabe: norte, sul, etc. ela relata que essa comunidade tem mais de oitenta palavras (!) para indicar essas direções e as crianças desde cinco anos são capazes de apontar a orientação geográfica em qualquer momento. temos aí mais um exemplo de como a linguagem se constrói socialmente na cultura2, mas o que me parece mais interessante para esta news é como linguagem, comportamento e sociedade se imbricam para constituir nossas subjetividades.
2. modo como algo está disposto, colocado.
claro que tem psicanálise aí. em uma entrevista3 mais ou menos recente, vladimir safatle é perguntado sobre inteligência artificial e dá uma resposta que, volta e meia, brota na minha cabeça:
a gente nunca delibera como uma máquina. você só delibera como uma máquina para as coisas mais estúpidas possíveis. “ah, vou ou não sair desse emprego”, “vou ou não comprar um carro”, mas essas deliberações não contam. para as coisas realmente importantes, você percebe a deliberação já feita, você reconhece ela. você olha para trás e fala “aconteceu”.
sempre fico pensando sobre quais são essas deliberações realmente importantes. será que é o que decidimos fazer num sábado livre? ou quando se decide não livrá-lo? será que é lidar com o tédio do domingo com o sol se pondo? será que é a resposta impensada que a gente dá já exausto de um dia de trabalho?
as coisas com que precisamos lidar, essas com que realmente precisamos lidar, são aquelas que não somos capazes de nos imaginar não fazendo.
3. lugar onde algo ou alguém se encontra.
uma paisagem. rio. caudalosa correnteza varre tudo, até o fundo, leva muito, deixa outro tanto. uma pedra assiste, rotação, dia, dia, noite, noite, translação, primavera, inverno, água varrer. para a pedra, é ver varrer. a pedra não sabe que ou se vai-se junto à correnteza, que ou se fica-se a assistir. a pedra é o que fica ou o que a água leva?
la pierre, c'est moi.
paisagem é posição de distância. “3. lugar onde (…) alguém se encontra”. é possível se encontrar à distância? só é possível se encontrar à distância. só nos vemos na paisagem.
4. função, cargo.
penso no posicionamento político, que também se orienta geograficamente: bússola política, direita e esquerda, etc. mas, mais do que isso, penso na lida da coisa minúscula, cotidiana, do serviço público enquanto docente.
posição estratégica. não é fortuito que todo vocabulário da política e da gestão venha do campo militar. “a guerra é a continuação da política por outros meios”, eis um adágio geopolítico. vice-versa, a política é uma espécie de guerra. se o que é público é questão de política, o serviço público talvez não se distancie tanto do serviço militar.
isso explicaria a exaustão de batalhar para trabalhar. estamos sempre em vigília, na disputa.
um dos significados metaforizados da posição é ser princípio. num debate, se ouvimos “minha posição é que…”, vamos ter notícia de algo – pelo menos, supostamente – inegociável, irrevogável. princípio, como o próprio nome já diz4, é o começo. parte-se daí. se você vai começar uma história, pode até começar pelo fim, mas é lá o seu princípio.
5. posturas corporais adotadas.
posição também é libido – e claro que, aí, também tem psicanálise. construímos uma sociedade sem princípios deitada à mercê do equivalente universal: o dinheiro. em desejo pós-capitalista5, na última palestra, mark fisher discute a economia libidinal de lyotard, que identifica dois modos de ler marx: o marx-velho e o marx-menininha.
ao notar a distinção de posição entre esses dois modos, fisher aponta que:
o marx-menininha simplesmente não gosta do capitalismo e quer que ele acabe. o marx-velho critica o capitalismo, e juntos eles deveriam ter esse filho que deveria ser o sujeito revolucionário do proletariado. mas esse filho nunca vem, porque o marx-velho nunca termina sua crítica contra o capital. ¶ essa coisa de adiar. não termine ainda. nunca termine. a crítica nunca está finalizada.
jouissance é um conceito central da psicanálise lacaniana. um conceito, inclusive, que ainda parece muito místico para mim. mas, no que eu consigo compreender, há uma satisfação que se extrai desse adiamento – por mais doloroso que seja. uma satisfação e um reconhecimento que vem do próprio gesto do marx-velho de criticar, de formas cada vez mais elaboradas, o capital.
tal qual o capital, a crítica se autonomiza e passa a ser objeto, por si só, de fetiche. esse é o jouissance, inclusive, que permeia uma boa parte da posição esquerda na política, adiando a revolução sempre para o horizonte, para depois. “na volta, a gente compra”.
em outro sentido, vou mais com rancière, para quem a igualdade não é um destino, mas um princípio. não se chega na emancipação, se parte dela. o grande problema dessa posição é como fazer desse princípio uma realidade.
a rigor, gabi ouviu o episódio mais recente do rádio novelo, intitulado cada um com sua bússola, em que a apresentadora menciona essa entrevista do radiolab, de um episódio de 2011. alguns diriam que houve aí uma sincronicidade. eu não digo nada, só fui ouvir.
há um grande debate nas ciências humanas sobre isso centrada nos termos da hipótese sapir-whorf. a ideia básica aqui é que a linguagem condiciona o modo como percebemos o mundo – o que me parece irrevogável. leituras mais fortes dessa hipótese diriam que a linguagem “molda” a realidade: por exemplo, você sente as coisas a partir da linguagem de que você dispõe. uma versão meio tosca disso é a ideia de novilíngua em 1984, de george orwell. versões contrárias à hipótese diriam que simplesmente inventaríamos uma nova palavra para descrever um fenômeno qualquer do mundo.
entrevista de 2024, trecho aqui. provocações é um programa da tv cultura que foi apresentado, ao longo de muitos anos, por antônio abujamra, um dramaturgo e autor genial. uma das coisas mais fodas é que a última pergunta que ele fazia para seus entrevistados era “o que é a vida?”. depois de ouvir a resposta, ele refazia a mesma pergunta, lacanianamente. ver a mudança de respostas sempre é muito impactante. falecido em 2015, o programa voltou depois com marcelo tas – que, óbvio, não se compara.
em algum momento, vou precisar retomar esse verbete.
o livro foi traduzido e publicado neste ano de 2025 pela autonomia literária. infelizmente, não tive acesso à tradução ainda, que, sem dúvida, deu uma solução muito melhor para os termos de lyotard do que essa tosca que fiz para a news.