trans•cre•ver, v. td.
correria. interioridade e alteridade; euscrever e transcrever. fantasmas. safatle: crítica, ideologia, linguagem, escuta, sofrimento. negação: “eu não sou desse mundo”.
1. fazer citação ou cópia escrita do texto alheio
semana passada mencionei esta palestra de safatle como algo que me impactou muito. e reitero. não consegui parar para escrever, então decidi transcrever uma parte da fala dele, talvez a parte que mais me afetou.
enquanto o fazia, não pude deixar de notar certa poética: transcrever é escrever por meio do outro. se escrever é um exercício de certa interioridade – euscrever, talvez? – transcrever me parece um exercício de alteridade bastante radical. citar, mencionar, é, de certa maneira, incorporar um outro, servir de veículo para alguém falar por meio de si.
não acredito em fantasmas, mas que há, há.
2. reproduzir por escrito (uma amostra de fala)
Por que eu tentaria explicitar como a minha linguagem – as condições pra minha experiência – na verdade preservam estruturas materiais de reprodução social? Por que que eu vou fazer uma reflexão crítica a esse respeito? A única resposta possível é porque esta forma de pensamento me faz sofrer. Essa forma de pensamento é a concretização de uma dinâmica de sofrimento social. Isso não é só um problema de teoria do conhecimento, não é só um problema da consciência cognitiva. [Tem a ver com] Como que a estrutura cognitiva da consciência é historicamente definida; [com] a maneira como eu organizo minha imaginação. Como eu organizo minha atenção, como organizo minha percepção, como organizo minha sensação; elas são todas historicamente construídas. Eu não tenho o mesmo tipo de percepção em uma forma social de produção e em outra forma social de produção. Eu não junto as coisas da mesma maneira. Eu não faço conexões, eu não penso da mesma forma. Eu não vivo da mesma forma. Tem uma forma de vida que se impõe a mim como absolutamente natural e completamente intransponível.
A única razão pela qual eu vou tentar então tomar distância dessa forma de vida que me naturalizou é que ela me faz sofrer. Então, por isso tem uma outra dimensão importante da ideia de crítica em Marx que a crítica como a escuta do sofrimento social. E aí, eu queria insistir num ponto, porque me parece um ponto muito importante. E essa é uma grande, uma grande contribuição do Marx. Lembrar que a única razão pela qual nós queremos criticar o mundo é porque esse mundo nos faz sofrer. Então, ouvir este sofrimento é a primeira condição do pensamento crítico. O pensamento crítico, antes de qualquer coisa, tem de se organizar como a escuta do sofrimento social. E Marx desenvolve um conceito para falar desse sofrimento social, de como as relações de trabalho nos fazem sofrer, de como as relações com com a linguagem nos fazem sofrer. O nome que ele dá um nome para esse tipo de sofrimento é alienação.
(…)
A gente precisa de um diagnóstico social pra poder conseguir, de uma certa maneira, fazer com que a crítica circule num campo maior da sociedade. Porque quando você fala isso, a sociedade sente. Você fala: “a gente entrou num processo no qual a gente se perde. Eu faço uma ação no qual eu não me vejo mais, uma ação no qual não tem nenhum sentido. Eu falo uma linguagem no qual não me encontro. Tem algo em mim que não consegue se expressar sobre a forma mais estabelecida da linguagem, que procura os seus, suas margens, seus interstícios, suas colisões”. Então esta dimensão ela é constituinte da experiência de uma crítica da ideologia. Por isso que eu faço crítica de ideologia. Por isso que é necessário fazer. Para mostrar como houve uma inversão que colocou o aquele que produz pra fora do seu produto, que fez com que as nossas imagens do pensamento aparecessem como completamente ahistóricas, como dadas universalmente. Mesmo que em outras sociedades pense-se de outra forma, essas outras sociedades devem ser arcaicas, devem ser atrasadas porque todas vão acabar pensando como nós.
(…)
A forma do pensamento é um problema política. O problema político não é só um problema de redistribuição de riqueza: para quem vai o objeto que foi trabalhado, como é que eu faço essa partilha dos objetos do trabalho. Não. Há uma questão muito mais importante que consiste em dizer que isso não é abstrato, essa não é uma história de professor de filosofia. Esse é um dos elementos pelos quais, inclusive, nós lutamos – que nós estamos a lutar. Quando você tem grupos que se mobilizam para mudar a linguagem, para mudar a maneira com que o sujeito se relaciona a linguagem, como eles são descritos pela linguagem para abrir outros espaços no interior da linguagem. Para insistir que, afinal de contas, nossas dicotomias, elas podem ser superadas; elas não são insuperáveis. Isso mostra como a forma de pensamento é uma parte do processo de reprodução material da sociedade e fazer a crítica dele é ampliar esse processo.
(…)
Qual era a função efetiva da crítica no campo político? Era permitir a emergência de um sujeito político que fosse capaz de fazer esta apreensão das condições que foram naturalizadas e criticá-las. Por isso, esse sujeito político tinha que ter uma força muito específica – essa talvez seja uma das grandes contribuições que Marx fez para o campo da política. Quem é o tipo do sujeito político revolucionário? E aí, eu insistiria esse é um terceiro aspecto da ideia de crítica. [1)] A crítica como escuta do sofrimento social, [2)] a crítica como explicitação dos nexos entre formas de pensamento e estruturas do pensar e [3)] a crítica como identificação dos sujeitos revolucionários com potencial revolucionário.
Qual é a ideia central aqui? É falar: o único sujeito que tem condição de ter potencial revolucionário é aquele que sabe dizer “não”, mas sabe dizer “não” de uma maneira que nunca se disse até agora. Que sabe dizer “não” como quem se afasta radicalmente, como quem se desidentifica radicalmente das instituições que parecem naturalizar as nossas formas de vida. Alguém que diz “não” à religião diz “não” à moral, diz “não” ao Estado, diz “não” à nação, diz “não” à família. Vocês lembram dessa passagem muito importante do Manifesto Comunista de Marx e Engels. Quando eles dão um nome pra esse sujeito: o proletariado.
O proletariado não é só aquele que não só tem a sua força de trabalho – e nada mais do que isso – para ser vendido, que foi espoliado de tudo, que está na mais absoluta miséria. Não, não é só isso. O proletariado é aquele que, dada essa condição social, ele transforma isso em uma arma política. Dada essa condição social, ele não vai sair à procura de uma melhor inserção nas instituições da sociedade burguesa capitalista. Ele vai dizer: “essas instituições não tem lugar pra mim. Nunca, nunca tiveram. Essas instituições, elas devem ser radicalmente afastadas e criticadas”. Essa frase frase famosa do Marx e do Engels: o proletariado não tem pátria, não tem nação, não tem religião, não tem moral, não tem família, não tem estado. E não se trata de dar um Estado, uma religião moral, uma família, uma pátria para o proletariado. Trata-se de fazer dessa força de recusa a maior de todas as armas políticas que a gente já conheceu.
Porque? Porque a maior? Porque é aquela de quem diz: “eu não sou desse mundo, esse mundo não é meu. Eu posso construir um outro mundo. Eu posso produzir um outro mundo que ainda não apareceu. E eu sei que eu posso. Por isso que eu ajo politicamente”. Então, é como se, nesse momento, a política conseguisse roubar dos deuses, conseguisse roubar da teologia, o fogo de construção de outro mundo. E esse é um dado importante: não basta só uma crítica, não basta só a crítica estruturada do presente. É necessário também essa capacidade de se afirmar como uma força de recusa, de desidentificação e uma promessa de construção.
(Leio todas as newsletters desde o lançamento, mas não cheguei a comentar nenhuma até então, hehe)
As partes sobre como as pessoas se relacionam com a linguagem (e o não se encontrar nela) me lembraram o "A escrita como faca", da Annie Ernaux, que li há algum tempo. Ela parte da ideia de autossociobiografia (embora ela mesma relute em categorizar seus escritos; no final, essa espécie de flag acaba sendo utilizada mais como uma convenção para que a gente tenha uma palavra que possa ser usada para caracterizar os trabalhos dela) na intenção de apresentar experiências individuais ou partilhadas pelo seu próprio núcleo familiar, mas colocadas de tal forma que possam ser familiares às pessoas em situação econômica similar. A ideia é utilizar a subjetividade para revelar fenômenos coletivos. Annie se menciona como uma trânsfuga de classe após o ingresso na docência, quando já não mais reside na pequena cidade de seus pais, e nesse mesmo livro, há um texto chamado "Vingar minha raça" - é lá que se faz presente a motivação que a conduz à escrita. A ideia dela é abrir caminho para os seus em um ambiente que não esteve disponível a eles:
“antepassados, homens e mulheres que suportaram a labuta que os levou a morrer cedo (..) recebi força e fúria suficientes para ter o desejo e a ambição de criar para eles um espaço na literatura.” (p. 21)
Já do outro lado, ela passa a estar em um mundo que leria a ela e a sua família como "pessoas humildes". Nesse novo lugar, quando se propõe a escrever sobre seu pai, Anne não vê muita sinceridade ao fazê-lo na "língua do inimigo". Ela recorre a uma escrita parecida com aquela utilizada em cartas enviadas à família, ligada às condições e à língua do mundo vivido por eles, como ferramenta para traçar o escrever capaz de comunicar suas questões familiares de forma não apenas significativa, mas preocupado com a posição daquelas pessoas no mundo. Me empolguei durante a leitura do livro e também acabei escrevendo um pouquinho sobre ele no Medium XD