ro•da•pé, sm.
platão e a história da filosofia ocidental. trabalho editorial, hipertexto e talmude. rancière, jacotot e a panecástica: “tudo está em tudo”. marginália e singularidade. comunicação humana.
1. algo secundário ou de menor importância
um adágio diz que toda história da filosofia ocidental são apenas notas de rodapé a platão. essa afirmativa foi feita por a. n. whitehead, um matemático e filósofo inglês importante para o século 20, que contribuiu para a lógica na filosofia. claro que é controversa, para dizer o mínimo.
pensar assim dá muita importância à filosofia antiga, a meu ver. pode até ser que platão tenha discutido todos os temas, mas o mais interessante da história das ideias não é a presença de tal ou qual significante. eu diria que o mais interessante é a dinâmica entre os outros significantes a que ele se associa, a depender do contexto histórico.
mas há algo de instigante em pensar quase dois mil e quinhentos anos de tradição filosófica como notas de rodapé. pensar o que se desdobra a partir do que é menos importante, de brechas que se abrem a partir do corpo do texto, do diálogo que se estabelece quando algo de menor se põe diante de nós. acho que as notas de rodapé podem ser algo de mais significativo do que normalmente atribuímos a elas.
2. edit. a parte inferior da página de um livro, jornal ou revista
da maneira que eu vinha escrevendo essa news, a parte mais editorial do processo era incluir as notas de rodapé, com as referências e algum contexto de sua procedência. isso é um trabalho em si mesmo e tomava seu tempo correspondente para realizar. como vocês sabem, nas últimas semanas, não tenho conseguido muito mais do que manter a disciplina; o que me fez dispensar as notas – o que é uma pena.
eu tentava fazer com que as notas de rodapé das edições anteriores tivessem algo de autônomo em relação ao corpo do texto, quase que sugerindo que elas fossem lidas como uma segunda camada da news, um conteúdo extra. talvez até um gênero literário em si mesmo. apontar para outras referências, desdobrar alguns assuntos. acho que isso cria uma abertura muito significativa para expandir o texto e lhe dar mais durabilidade.
isso é um pouco do que está por trás da ideia de hipertexto, muito celebrada na primeira onda da internet. essa capacidade cria uma rede de vínculos significativos que possibilita a assimilação e a crítica das informações de maneira produtiva. não que isso fosse uma novidade da internet, claro; o talmude vinha acompanhado de notas que continham uma certa fortuna crítica dos rabinos que direcionavam a interpretação da palavra divina desde o século 1 da era comum.
3. do francês pied-de-roi ("pé do rei"), originalmente uma medida de comprimento, posteriormente associada à base de estruturas.
em o mestre ignorante, jacques rancière usa a história e a voz de joseph jacotot para propor uma educação emancipadora. jacotot foi um intelectual e professor que viveu entre os séculos 18 e 19, criador dos princípios de emancipação intelectual que ficou conhecido como panecástica.
a panecástica se baseia em três princípios muito simples:
todas as pessoas têm igual inteligência;
toda pessoa recebeu de deus a capacidade de instruir-se a si mesmo;
tudo está em tudo.
esses fundamentos têm desdobramentos muito radicais – ou seja, que nos levam a questionar as raízes das questões – e que têm implicações profundamente transformadoras. em particular, o terceiro princípio é o que nos levam a problematizar, complexificar e criticar o solo material em que toda história se dá. dizer que tudo está em tudo, significa que devemos simplesmente “aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto”.
me parece que a hierarquia menor do rodapé abre brechas para relacionar qualquer coisa a todo o resto. se a estrutura do corpo do texto impede linhas de fuga e rupturas da razão – sob o risco de fazer desabar todo esse edifício lógico – as notas o abrem para além de sua coerência interna e o faz respirar, dar-lhe algo de vivo.
4. cons. barra de madeira ou outro material que se coloca na parte inferior das paredes
o termo técnico para isso seria marginália: o conjunto de elementos registrados nas margens de livros e impressos, que foi fundamental para a difusão de conhecimento nos escritos religiosos na idade média – provavelmente, influenciados pela prática judaica do talmude (não tive condições de verificar isso). não só ali, mas durante toda a cultura escrita da humanidade.
é ali, nas margens, que se identificam a participação ativa do leitor, da singularidade dos sujeitos. se for isso, toda tradição da filosofia ocidental é mesmo rodapé de platão: é onde se desdobra e se atualiza aquilo que já foi dito – porque, não se enganem, tudo já foi dito. nada de novo debaixo do sol. mas não é isso que é significativo no dizer; comunicar não é emitir códigos – pelo menos, não a comunicação humana, como já falei na edição sobre imagem.
comunicar humanamente é produzir singularidade a partir da inserção em todas as estruturas que nos compõem. é transmitir o intransmissível. é um curto-circuito em todo aparato que nos faz nos conceber como um e finalmente nos tornar outro. é, em outras palavras, um contrassenso absoluto. é, talvez, um pequeno milagre. e isso não passa de um rodapé na história da humanidade.
Nota de rodapé sempre me pega. As tuas tinham comentários como "Gabi me mostrou esse livro, mas não li", que eram bons demais. Mas entendo a necessidade de apará-las por aqui. E tenho um monte de referências loucas sobre isso. Tem um artigo excelente de Joaci Pereira Furtado de como as notas e o design da ABNT deixa tudo feio e sem importância. Tem Glass de Derrida que é um texto com marginálias notas internas, uma verdadeeira alucinação do design. Academicamente, a nota como uma necesidade informativa com Ver Mais, Op. Cit. nomes e números realmente não faz muito sentido, quer dizer, faz pouco, um sentido informativo apenas. Mas a nota como desvio e como excesso de um texto, como aquilo que não coube no corpo de texto mas ainda tem a necessidade de ser dito costuma ser bonita demais.
nota de rodapé:
1. quando vi seu comentário sobre não estar utilizando notas de rodapé nessas últimas edições, foi quando me dei conta de que não tinha visto, e imediatamente senti falta delas, são muito boas... que você tenha mais tempo para inserir novamente no futuro.
2. A comunicação é impossível, por isso ela acontece.( parafraseando lacan)