pro•pó•si•to, s.m.
automatismos e elaboração. subjetividade neoliberal. dialética: sofrimento e desconforto. narcisismo. desidentificação. imanência-transcendência. futuro: freire, fisher e berardi. diário de tolstói.
1. intenção, objetivo, desígnio (aquilo que se pretende alcançar)
vocês pensam por que vocês fazem as coisas que fazem?
muito do que fazemos tem a ver com certos automatismos que, invariavelmente, acumulamos ao longo da vida. de certo modo, é como se nós não escolhêssemos muita coisa do que fazemos. paradoxalmente, esse amplo inconsciente é precisamente o que nos constitui enquanto singularidade: nossa história e aprendizados internalizados que viram comportamentos como memória muscular.
é muito difícil nos desfazermos desses automatismos (falei um pouco disso no verbete ilustrar). me parece que uma das funções das psicoterapias – cada uma com seu sentido próprio – é nos fazer pensar por que fazemos as coisas que fazemos, sobretudo aquelas que nos causam algum sofrimento. diminuir o sofrimento, claro, é um motivo salutar, na maioria das vezes.
2. determinação, firmeza de vontade
não me parece difícil ver como isso desemboca em certo senso de autodisciplina e de individualidade que, nos melhores casos, fundamentam certo fortalecimento do eu (comum na psicologia cognitiva), e, nos piores, as autoajudas e os coaches. de um modo ou de outro, isso orbita a subjetividade neoliberal e estrutura a sua gramática, seu campo semântico, suas metáforas.
o grande problema é que a realidade não é mecânica, mas dialética. por exemplo, diminuir o sofrimento até que ponto? quando ocorre a transformação de qualidade entre o sofrimento e o desconforto? basta lembrar que o princípio do prazer tende à eliminação do desconforto e caracteriza o nível mais primário do narcisismo: aquele esterotipicamente relacionado à criança que não tolera ser contrariada, para quem o mundo precisa se dobrar – mas que não se limita a crianças.
o grande desafio de elaborar o motivo de fazermos o que fazemos, eu acho, é a contradição dialética que inicia nosso processo de desidentificação conosco, com objetivo de superação de si. talvez, daí a ideia de certa transcendência, de certo devir e, portanto, de certa teologia: algo que está para além do que há.
3. assunto, tema (em contextos formais ou literários).
algo, portanto, muito além do léxico do pragmatismo, do realismo, do possível. se concordamos que devemos partir da matéria-prima do materialismo, devemos ter em vista sua superação. daí que surge a síntese da abordagem imanente-transcendente do materialismo histórico dialético: partimos do que há rumo ao que não há ainda.
só por isso vale a pena alguma crença no futuro – no esperançar, como diria freire. já elaborando sobre essa sensação de estagnação desde a pedagogia do oprimido, ele discute mais explicitamente esse afeto de paralisia nos anos 1990. mark fisher formularia mais tarde como realismo capitalista e o seu lento cancelamento do futuro (também apontado por berardi).
contraditoriamente, num outro salto dialético, a transcendência não é algo que está no porvir, mas que o precede. é um princípio. é o propósito pelo qual fazemos as coisas que fazemos – afinal, propôr, como o próprio nome já diz, é antecipar o que será feito. pensar, refletir sobre o que fazemos, para que a vida seja experimentada, que ela seja uma errância.
finalizo com uma referência literária, tolstói em seu diário de 1º de março de 1897. o que me leva de volta à minha pesquisa do mestrado e ao começo dessa news. isso talvez seja o indício de que é hora de retomar essas coisas.
Eu estava limpando a sala; ao dar a volta, aproximei-me do divã e não consegui me lembrar se o havia limpado ou não. Como esses movimentos são habituais e inconscientes, não conseguia lembrar, e tinha a sensação de que seria impossível fazê-lo. Portanto, se limpei e me esqueci, isto é, se agi inconscientemente, é exatamente como se eu não tivesse realizado a ação. Se alguém consciente tivesse me visto, seria possível uma reconstrução. Porém se ninguém viu, se ninguém viu conscientemente, se toda a vida complexa de tanta gente se passa inconscientemente, é como se essa vida não tivesse existido.
grifo meu.