in•co•men•su•rá•vel, a2g.
perspectiva e sentido – e a perda dele. a passividade da ironia (outra vez). anestesia, saúde mental: vai endoidar, é?. lógicas, foucault (outra vez). a negatividade das vanguardas, gramática.
1. que não pode ser medido por causa de suas dimensões, sua intensidade ou seu valor
sem arrudear: as nossas atividades cotidianas são crescentemente insignificantes. dia a dia, sinto o violento esvaziamento daquilo que há muito pouco tempo fazia sentido fazer. creio que nossas ações só adquirem sentido diante de certa perspectiva, de certa posição em que as colocamos em relação a outras coisas. já falei de posição nessa news.
o que é difícil quando vivemos o esgarçamento das possibilidades de proporcionar, de medir uma coisa em relação a outra. é cada vez mais comum que eu me veja meio sem sentido rumo às minhas atividades docentes diárias: para que ensinar num mundo que parece sem futuro? qual a importância de orientar uma ilustração diante do inexplicável, indizível, incomensurável sofrimento que ocorre em gaza? pra que falar de motion design diante do escalonamento de um conflito que pode culminar em armas nucleares?
já falei também da resposta que tendemos a dar – a resposta irônica. cada vez que postam aquele já cansado meme “e o caba vai endoidar, é?”, só consigo ver a autoadministração de gotas homeopáticas de anestesia – literalmente encarnada no rivotril cada vez mais ostensivo, cada vez mais cedo, para cada vez mais fins. psicologicamente, longe de mim julgar; o debate sobre medicalização e patologização na saúde mental é enorme.
2. que não é passível de comparação por falta de medida comum
ainda que as dimensões psicológica e a sociológica sejam incomensuráveis – afinal, elas atendem a lógicas diferentes, como o próprio nome já diz – é preciso saber ouvir o sofrimento social. talvez, sociologicamente, devêssemos mesmo endoidar – talvez, a única saída racional seja endoidar. não endoidar, aqui, é manter o curso das coisas como estão e, isso sim, é insustentável.
isso quer dizer, na verdade, subverter certa racionalidade. se foucault fez alguma demonstração cabal – e ele fez –, é que a circunscrição do que é a loucura é uma maneira de controle, de docilização de corpos e controle de comportamentos. e a racionalidade que está por trás do meme, que nos impede de endoidar, é a mesma que nos leva a adoecer no mundo tal qual ele é.
endoidar aqui, talvez seja, justamente, parar o curso dessa racionalidade. negar o mundo tal qual é. rejeitar certo tipo de realismo e buscar outras gramáticas, outros modos de expressar e representar o mundo. esse é mesmo o projeto das vanguardas do início do século 20 – é o que sempre digo nas minhas aulas de história do design. só que parece que estamos numa volta ainda mais apertada do parafuso da história: não estamos mais na época otimista dos manifestos. hoje, tudo o que sobrou disso foi uma reprodução tosca mediada pelo consumo, que nos afunda mais no mesmo problema. aquele otimismo, calcado na negatividade das vanguardas, não existe mais, ao que parece. o capital assimilou tudo.
endoidar parece bom, até. reconhecer e se defrontar com o tamanho do buraco; olhar para o abismo e deixá-lo olhar de volta. o trabalho maior aqui, me parece, não é tornar as tragédias comensuráveis; não se trata de inventar uma régua que meça uma e outra. isso, em larga medida, as plataformas já fazem: tudo ali é conteúdo. seja a criança mutilada em gaza ou a foto do seu amigo na academia. se trata, na verdade, de voltar a fazer com que essas coisas sejam incomensuráveis, que elas não possam existir num mesmo mundo. ou ainda, que não possa existir esse mundo.
boa parte dessa news são ecos de uma aula de safatle que me impactou muito, esta aqui. devo retornar a ela algumas vezes nas próximas.
Interessante como todo texto, pra mim, tem uma trilha sonora. Balada do Louco foi o que me guiou no teu texto. E, refletindo sobre tudo o que foi dito, como disse Ney, “…é bem melhor não ser o normal”. Que seja incomensurável essa noção de mundo.