dú•vi•da, s.f.
coerência textual ou temática? leitor implícito, violinistas do titanic, desejo. tratados do século 17, flusser e polivalência da dúvida. krenak, paulo freire e a palavra.
1. ausência de clareza ou certeza sobre fatos, informações ou ideias.
começo essa edição sem saber onde vai dar. isso é raro. em geral, tenho algum esboço ou esquema mental do trajeto do texto – ainda que o mapa seja bem diferente do território. sempre é preciso algum trabalho: nos casos mais tranquilos, ir checar uma citação ou uma referência e, nos mais graves, me meto a ir atrás de artigos, livros e preciso mesmo estudar.
agora, não. enquanto escrevo, penso que isso talvez dê até mais coerência – não textual, mas temática. com a textual, não me comprometo. aliás, estou disposto a comprometê-la pela temática. afinal, como escrever sobre a dúvida sem dúvidas do próprio medium da dúvida, o texto?
preciso confessar, foi precisamente essa dúvida que me fez escolher esse verbete: a dúvida do texto. deste texto e desses outros textos que tenho escrito. vocês se duvidam muito? isso não é um CTA, por favor, não respondam nos comentários. a não ser que você queira, será uma resposta bem-vinda, claro, mas me interessa mais fazer alguém pensar. eu mesmo me duvido pra caralho.
2. incerteza da mente em face de uma afirmação, um fato ou uma decisão; hesitação, indecisão.
nunca sei se vale o esforço, isso aqui. se vocês tão aqui desde o recente início, vocês vão lembrar que a primeiríssima edição, do desassossego, veicula essa mesma dúvida. e, embora me absorva muito a ideia do texto sem leitores, não sei se estou em condições de dedicar trabalho e tempo a essa belíssima contradição.
tento me convencer que nada disso é sobre os efeitos ou possíveis consequências, que o próprio processo de escrever deve ser autossuficiente. e é. mas também não é. se fosse, estaria entre folhas em um caderno fechado. às vezes, quando eu vejo livros de cartas ou pesquisas históricas que usam diários como fonte, penso como talvez a gente viva mesmo num tempo sem história porque deixamos de produzir esse tipo de documento. quer dizer, pelo contrário, produzimos documentos a ponto de torná-los todos irrelevantes – o que dá no mesmo.
mas, retomando: o escritor presume o leitor. por mais poética que seja a imagem do violinista do titanic, a verdade psicanalítica é que desejamos o desejo do outro, o que nos implica numa dialética de reconhecimento bastante intricada. ou seja, se não há leitores, não vale o trabalho. mesmo que haja leitores, será que vale o trabalho? se há leitores, esses leitores não deixarão de ser leitores se eu não escrever – e eu nem sei se tenho algo realmente importante a dizer.
eis a dúvida.
3. aquilo que é incerto, ambíguo ou controverso.
quando estava escrevendo o segundo parágrafo, lembrei do título de um livro: da dúvida. pensei que seria bastante adequado – me soou interessante porque essa semana falei de erasmo de roterdã e do elogio da loucura na aula de história do design e lembrei da época em que o li. esse tipo de escrita ensaística lá do século 16, 17, que tenta dissecar um conceito… me dou conta que é mais ou menos isso que estrutura essa news.
eu não lembrava quem era o autor, joguei no google: flusser. claro. vi que era a edição da editora é realizações, cuja coleção completa de flusser comprei numa promoção há já bons anos (acho que tava com 50% de desconto, e acho que a editora fechou) mas nunca tive a oportunidade de ler. fui lá pegar o livro.
abri aqui. logo no primeiro parágrafo do prefácio, rodrigo petrônio menciona didi-huberman e a filiação ao anacronismo – coisa de que tenho me aproximado – e nota que o título “preserva a preposição de com o artigo ou o pronome demonstrativo feminino a, à maneira dos tratados dos séculos XVII e XVIII”. errei o século, mas não vou voltar pra mudar. em algum momento decidi escrever esse texto indo sempre em frente. como dizem os jovens: foguete não dá ré. ainda dizem?
flusser abre a introdução magistralmente, que vou me dar ao luxo de citar na íntegra aqui.
A dúvida é um estado de espírito polivalente. Pode significar o fim de uma fé, ou pode significar o começo de uma outra. Pode ainda, se levada ao extremo, institucionalizar-se como "ceticismo", isto é, como uma espécie de fé invertida. Em dose moderada estimula o pensamento. Em dose excessiva paralisa toda a atividade mental. A dúvida como exercício intelectual proporciona um dos poucos prazeres puros. Como experiência moral ela é uma tortura. A dúvida, aliada à curiosidade, é o berço da pesquisa, portanto de todo conhecimento sistemático. Em estado destilado mata toda curiosidade e é o fim de todo conhecimento.
4. suspensão ou questionamento de uma crença, ceticismo.
a dúvida é da palavra. a ambiguidade é proposital. do pouco que estudei de psicanálise lacaniana, não há dúvida para o imaginário; ele é sempre ilusioriamente completo. a dúvida é da linguagem. o reino da dúvida é o simbólico, os deslizes na cadeia de significantes, a irrupção do inconsciente, o ato falho, o sujeito cindido.
mas o outro sentido é a palavra é que é o objeto da minha dúvida. se essas palavras todas, amontoadas juntas, fazem sentido. e, mais duvidoso ainda, se fazem sentido para um outro. e, ainda mais duvidoso ainda, se fazem sentido duradouro para um outro – porque, bom, ser lido e ser esquecido, de que adianta?
não sei se me sinto acolhido ou desesperado, mas essa dúvida não é só minha. essa semana, estava vendo uma conferência recente de ailton krenak no college de france em que ele fala, entre outras coisas, da falta de verdade das palavras como um sintoma da nossa escassez de futuro. e é preciso resgatar uma certa crença nas palavras porque elas são, mesmo, capazes de fundar futuros. outra referência nesse sentido é paulo freire, que sempre insiste nessa crença na capacidade das palavras de transformar a realidade.
mas, sinceramente, com a experiência num mundo como o nosso, não sei como não ter dúvida.
dá pra pensar na dúvida como uma força entrópica, que exige uma contra-força em igual intensidade pra que as coisas fiquem, no mínimo, do jeito que estão. olhando por aí, até a paralisia é uma disputa acirrada entre vetores opostos :)