dis•ci•pli•na, s.f.
1968, disciplina e Lei. foucault e byung-chul han: biopolítica, suprassunção, psicopolítica. ideologia neoliberal, empreendedorismo, coaches. disciplina humanizante: potência, liberdade, novo.
1. princípios de ordem estabelecidos para o funcionamento adequado de instituição, atividade etc. (disciplina militar).
há até muito pouco tempo, disciplina não estava com boa fama. desde os movimentos de contracultura dos anos 1960, a Lei foi desafiada. Lei no sentido psicanalítico. e desafiada, pelo menos, à primeira vista. lacan rebateu essa ideia a quente quando disse que aqueles jovens franceses de 1968 simplesmente desejavam outro senhor. pelo modo como isso se degradou em consumo, parece que ele estava certo.
ainda como repercussão desse momento, sob a letra de pensadores pós-estruturalistas como foucault, a crítica à disciplina assumiu contornos mais afiados. essas sociedades disciplinares – como o francês as denominou e como o próprio nome já diz – impôs o controle no nível do corpo para programar os modos de vida. isso, claro, tem implicações das mais diversas ordens: sociais, subjetivas, de gênero e raça, médicas, legais, etc. a esse nexo multifacetado, foucault deu o nome de biopolítica.
isso foi suprassumido, como diria nosso amigo hegel.
(eu acho que minha vida mudou com o conceito de suprassunção e, às vezes, me sinto meio criança quando falo disso. sabe quando a criança aprende uma palavra nova e só sabe repeti-la e vê-la em todos os lugares? isso tem um nome técnico na psicologia: efeito baader-meinhof. no ensino, quando a aula causar esse efeito em alguém, eu a chamo de uma boa aula. é assim que protejo minha criança interior, eu acho.)
2. sujeição a esses princípios e sua observância, espontânea ou imposta.
a suprassunção é um conceito muito interessante porque ele compreende como as coisas acontecem na história humana. a palavra expressa três sentidos contraditórios, mas simultâneos: negar, conservar e superar. mais sobre isso numa outra news.
por ora, foucault. a biopolítica foi suprassumida porque o tipo de controle que temos hoje é diferente; ele não se dá apenas no nível biológico, dos corpos. ele se dá na psique e, por isso, byung-chul han vai sugerir o conceito de psicopolítica. ou seja, o controle social se dá em um nível muito mais íntimo e sofisticado do que no nível dos corpos.
há, portanto, uma negação da biopolítica, que também aponta, contraditória e simultaneamente, para as suas superação e conservação. a coisa é biopolítica também, mas não só. e a psicopolítica vai ter determinações diretas nos corpos, claro.
isso se expressa muito bem na ideologia do empreendedorismo, que está intimamente relacionada à subjetividade neoliberal. o princípio da performance, de que han também fala, é autoimposto. a autodisciplina é louvada – e reparem que a conotação religiosa é proposital.
3. disposição e constância para realizar algo; persistência.
vangloriar-se de matar um leão por dia se torna um mecanismo de defesa porque ele só adquire sentido numa dimensão metafísica. não há nenhuma evidência material que aponte qualquer mudança. esse procedimento psicopolítico se generaliza, mas é sempre mais agudo para as pessoas mais marginalizadas e precarizadas. e lá vêm os oportunistas vendedores de curso, coaches, influencers e congêneres exaltam a autodisciplina, claro. “foco, força e fé”. e isso é reforçado nessa máquina maluca das plataformas.
a dúvida, de que falei semana passada, só cresce e só deus sabe como tá a cabeça do palhaço. por isso, talvez eu devesse finalmente admitir que escolhi este verbete nesta semana porque a única coisa que me motivou foi a constância, o hábito.
há uma coisa existencialmente bela, eu acho, em manter a disciplina, a despeito de tudo. tem uma coisa aí que nos humaniza e que aparentemente está desaparecendo ou sendo obscenizada no capitalismo tardio – como tudo o mais que nos humaniza.
pensando nisso, remeto a uma experiência que tive, ainda na graduação, de fazer um desenho por dia, durante um ano. é árduo, claro, mas em algum momento, nasce uma liberdade muito potente, em termos subjetivos, de saber que você pode fazer qualquer coisa – boa ou ruim, na maioria das vezes, ruim – e que amanhã vai fazer de novo. ênfase aqui no novo.
4. área do conhecimento humano, esp. aquela estudada no ensino escolar; matéria.
ironicamente, “de novo” é a expressão que usamos para quando parece que não vai haver algo novo. como se hoje fosse repetir ontem, que vai ser repetido amanhã. isso, como tudo, é histórico: a falta de expectativa de que amanhã seja novo é intencionalmente produzida. como falei, na nossa experiência cotidiana, não há evidência material que aponte qualquer mudança.
acho que deleuze teria algo a dizer sobre isso, com seus conceitos de diferença e repetição. não sei, nunca li. (também nunca li foucault, mas vamo que vamo). o fato é que, etimologicamente, disciplina é o que embasa coisas muito caras para mim: ensino, conhecimento, sabedoria, ciência, aprendizado, método. todo um léxico que orienta boa parte das coisas que eu faço.
não que eu ache que a etimologia seja uma fonte muito confiável; acho até tosco, às vezes, quando as pessoas tentam implicar alguma relação de causa e efeito por meio da etimologia (já fiz isso). mas eu não estaria escrevendo uma newsletter calcada em critérios denotativos e etimológicos se não acreditasse que isso desempenha algum efeito na linguagem e, portanto, na nossa subjetividade. é só que a coisa é mais complexa que uma relação direta entre causa e efeito.
5. Rel. tipos de chicotes ou correias com as quais os frades e devotos se açoitam por penitência.
“o hábito faz o monge”; aqui, de novo, a questão não é a coerência textual, mas a temática. é só manter a prática. de cara, me perdoem a falta de edição e a não-linearidade das últimas news.
todas essas coisas que se veiculam por meio da disciplina exigem mesmo uma larga demanda de esforço, de penitência. como costumo dizer na posição de professor – ou será que a posição de professor diz isso por meio de mim? –, “se fosse fácil, todo mundo fazia”. ou ainda, “nada que vale a pena vem fácil”. é com base nesse fragmento de verdade que a ideologia hegemônica desumaniza esse aspecto humanizante de nossas atividades, de nosso trabalho.
a disciplina direcionada, politizada, pode reconstruir a liberdade de poder viver de novo.